Gente feliz com lágrimas, de João de Melo


Ficha técnica
Título – Gente feliz com lágrimas
Autor – João de Melo
Editora – Publicações Dom Quixote
Páginas – 486
Datas de leitura – de 17 a 23 de fevereiro de 2016


Opinião
É humanamente impossível não descerrar a última página desta obra e não continuar a sentir que se foi abalroado por uma hecatombe de “um sofrido sofrimento e de uma miséria miserável” (pág. 313). O nó na garganta, o peso no peito, tudo se mantém.
Não foi uma leitura fácil. Muito menos leve e agradável. Ponderei muitas vezes não terminá-la. Mas fui avançando, sabendo que seria mais do mesmo – uma narrativa carregada de violência, de maus-tratos, de incompreensão, de frustração, de muita falta de afeto, de contínuos desejos de evasão e de um presente e futuro cinzelados pelo passado. Uma narrativa que nos atropela, nos esmaga, mas que o faz através de uma escrita poderosamente bela, que suaviza e amarga momentos que, por exemplo, descrevem o amor que Nuno faz com a sua mulher, Marta, ou relatam de forma crua e intensa o diálogo que os dois mantêm e que nos anuncia o final do seu casamento.
A obra está dividida em seis partes, em seis “Livros” e através deles vamos conhecendo os elementos de uma família açoriana. Vivem daquilo que o campo e os animais lhes providenciam e, tal como muitos outros insulares, zarpam das suas terras em busca de uma vida melhor no continente americano. Apenas Nuno não foi tocado por esse desejo e viverá a maior parte da sua vida no continente, em Lisboa.
No “Livro primeiro”, entramos nas recordações de três irmãos – Luís Miguel, o mais velho, Maria Amélia, a rapariga mais velha, e Nuno Miguel, o quarto dos irmãos e aquele que será o protagonista desta história. E essas recordações marcarão o ritmo do que se seguirá nos restantes “Livros”. E marcarão o seu tom, um tom tão amargurado, tão doloroso, tão sofrido (mas infelizmente tão familiar naqueles tempos e quem sabe nos de hoje…), que desejei e tudo fiz para sacudi-lo e tirá-lo de cima de mim. É um “livro” penosamente longo, demasiado longo, na minha opinião, pois se o autor o tivesse escrito em menos páginas, o efeito no leitor seria o mesmo, já que alguém com o poder de escrever com uma escrita assim perfeita fá-lo-ia facilmente. É um “Livro” que nos recorda um país debaixo da mão de ferro de um ditador caquético e de uma religião castigadora, um país de gente que existia para reproduzir, para criar mão-de-obra gratuita e subtrair-lhes alimento em benefício de um monte de notas passadas a ferro e escrupulosamente guardado debaixo do colchão. É ainda um “Livro” que nos marca a ferro quente uma dor doentia perante uns pais que são piores que animais, que os tratam melhor que aos próprios filhos.
Nos restantes “Livros” prossegue a saga das referidas personagens, de uma gente que não consegue ser feliz, mas que raramente verte lágrimas sentidas, que se acomodou a uma existência miserável, a uma existência que pouco difere da que deixou na infância açoriana. É certo que o dinheiro agora abunda, mas não consegue ser sinónimo de felicidade.
Esta foi a minha primeira experiência no mundo dos livros de João de Melo. Encantou-me a sua escrita, rendi-me a passagens lindíssimas, mas confesso que tenho receio de pegar noutra obra sua… O excesso de dor, de sofrimento, de miséria humana retraem-me…
E fico-me por aqui…

NOTA – 08/10


Sinopse
Quando tinha 22 anos, em 1971, João de Melo foi enviado para a guerra que se travava entre Portugal e Angola, uma das suas colónias. Durante mais de dois anos, o romancista permaneceu em África como militar adstrito aos serviços militares de saúde. Dessa experiência e da sua infância nas ilhas dos Açores se alimenta boa parte da sua obra literária.

"A literatura - afirma João de Melo - é um espelho, um reflexo imaginário dos povos. É mais cómodo, mais certeiro, porventura até mais fácil, conhecermos os povos e os países pelo seu imaginário do que propriamente pela sua paisagem ou pela sua geografia".

"Gente Feliz com Lágrimas" é um desses textos que refletem o imaginário de um povo. O seu tema gira em torno do mundo dos emigrantes dos Açores que, em meados do século XX, deixam a sua pequena pátria e as suas raízes e partem com toda a família em busca de novos horizontes na metrópole. A nostalgia da terra que fica para trás, a fragilidade dos nexos que unem a família e o mundo novo que enfrentam constituem um triplo desafio do qual é difícil sair airoso.

A vida secreta das abelhas, de Sue Monk Kidd

           RELEITURA

Ficha técnica
Título – A vida secreta das abelhas
Autora – Sue Monk Kidd
Editora – Edições ASA
Páginas – 285
Datas de leitura – de 12 a 16 de fevereiro de 2016


Opinião
Há leituras que nos aconchegam. Que nos confortam e nos aquecem como uma mantinha nas pernas, lareira acesa e uma quentinha chávena de chá. Que nos mimam com aquele carinho que sempre cai bem.
Ora, A vida secreta das abelhas proporcionou-me essa leitura. Depois de sair a custo do mundo cru e violento da Nápoles de Elena Ferrante, emigrei para o outro lado do Atlântico e encontrei-me no sul dos anos 60 de uns Estados Unidos a borbulhar de tensões raciais. Contudo, o objetivo era escapar de ambientes tensos de ódio e violência e submergir-me em vidas e histórias que cheirassem e me deixassem na boca o sabor doce, suculento e fresco de que tanto necessito para quebrar o dorido, o amargo e o áspero das vidas de Lena e Lila da tetralogia de Nápoles.
Confesso que até ter relido a outra obra de Sue Monk Kidd que tenho (ver opinião completa aqui), não me lembrava em absoluto de que tinha A vida secreta das abelhas nas minhas estantes. Foi-me oferecida há mais de dez anos (andava eu grávida do meu D. – a dedicatória confirma-o) e nada recordava – nem quem ma tinha oferecido nem se já a havia lido. Agora que a devorei em pouco mais de quatro dias e ter confirmado que sim, já a havia lido (há gralhas corrigidas com a minha letra), não consigo encontrar justificação para tão “cruel” esquecimento… A não ser o número significativo de leituras que entretanto passaram pelas minhas mãos… Mas nem essa justificação me convence… Porque por muito que tenha lido, a história e as personagens deste romance aqueceram-me a alma, coloriram os dias cinzentos e tormentosos que nos ofereceu fevereiro e confirmaram-me o quão mágico e deleitoso é o sentimento de pertença, de fazer parte de uma família (biológica ou não), que nos acolhe nos seus braços e nos faz sentir que somos de alguém.
Como nos refere a sinopse, esta magnífica obra de Sue Monk Kidd constrói o seu enredo à volta de uma frágil menina órfã de mãe e que pouco ou nada sabe do que é ser amada. Tomada por um impulso, foge de casa, não sem antes cometer (mais) um crime. Não empreende a fuga sozinha. Liberta a sua criada e amiga Rosaleen (presa por se ter insurgido contra uns brancos que se meteram no seu caminho e a insultaram) e as duas deitam-se ao caminho. Quis o destino que esse caminho as levasse até a uma casa, pintada de rosa vivo, onde vivem três irmãs negras que se dedicam a amar-se e a proteger-se umas às outras e ao negócio das abelhas.
Será nesse lar contaminado pela doçura e pelas características paliativas do mel e da vida rotineira das abelhas que Lily descobrirá as respostas para todas as suas perguntas e angústias e sobretudo aprenderá que o amor está nas pequenas coisas, nos detalhes sem importância e nos braços, colo e olhar de três irmãs, cuja maravilhosa excentricidade é o espelho do que devem ser os laços que unem aqueles que se querem.
É óbvio que se pode catalogar esta obra como predominantemente feminina, já que nos apresenta um punhado de mulheres fortes, determinadas, que vivem em comunidade, tal e qual como se fossem uma colmeia, na qual os zangões têm uma participação algo secundária, mas ainda assim significativa, e cujas ações e atitudes demonstram a umbilical ligação que as une. Contudo, creio que, apesar de lhe colarmos esse rótulo, A vida secreta das abelhas é um hino à vida, à vida que não deixa de ser doce, apesar das agruras de contratempos mais ou menos importantes, e a esse sentimento que já referi – ao sentimento de pertença, de se sentir parte de alguém, de um espaço, de uma comunidade onde o que mais importa é o amor.
É esse o instante que invoco com maior nitidez – eu, parada na alameda, virada para elas. Lembro-me delas ali, à minha espera. Todas aquelas mulheres, todo o seu amor, à espera.” (pág. 283)
Concluo dizendo que, tendo sido releitura ou leitura desta vez com olhos de ver, de reparar, as páginas impregnadas de doçura de A vida secreta das abelhas aquietaram o meu coração, varreram o mau-humor, os sentimentos amargos e os dias de tormenta para um canto e propiciaram aquilo que tanto busco numa leitura – mudanças (por muito pequeninas que sejam) em mim própria e aquela ânsia aflitiva que me assalta frequentemente – a de tocar, de abraçar, de olhar e de mimar aqueles que me são tudo.
Foi, sem dúvida alguma, uma leitura muito emocional e, como tal, tenho que dar-lhe nota máxima!

NOTA – 10/10

Refiro ainda que, com esta obra, participei no desafio a decorrer no Goodreads – Maratonas, Desafios e Leituras conjuntas – Ler cinema – pois A vida secreta das abelhas foi adaptada ao grande ecrã em 2008. Deixo-vos o link para o correspondente trailer:


Sinopse
Um romance sobre o poder transcendente do amor e a faceta feminina de Deus. Uma história que as mães gostarão de contar às filhas.
Lily cresceu na convicção de que, acidentalmente, matou a mãe quando tinha apenas quatro anos. Do que então aconteceu, ela tem não só as suas próprias recordações mas também o relato do pai. Agora, aos catorze anos, tem saudades da mãe, a quem mal conheceu mas de quem recorda a ternura, e sente uma desesperada necessidade de perdão. Vive com o pai, violento e autoritário, numa quinta da Carolina do Sul, e tem apenas uma amiga, Rosaleen, uma criada negra cujo semblante severo esconde um coração doce. Na década de 60, a Carolina do Sul é um sítio onde a segregação é ainda realidade. Quando, ao tentar fazer valer o seu recém- -conquistado direito de voto, Rosaleen é presa e espancada, Lily decide agir. Fugidas à justiça e ao pai de Lily, elas seguem o rasto deixado por uma mulher que morreu dez anos antes e encontram refúgio na casa de três excêntricas irmãs apicultoras. Para Lily esta vai ser uma viagem de descoberta, não só do mundo, mas também do mistério que envolve o passado de sua mãe.

"A Vida Secreta das Abelhas" é um romance sobre o poder transcendente do amor e a faceta feminina de Deus. Sue Monk Kidd, ao escrever sobre o que é misterioso, e até difícil, na vida, ilumina tudo o que esta tem de maravilhoso. Ela prova que uma família pode ser encontrada nos sítios menos prováveis – talvez não sob o nosso próprio teto, mas no sítio mágico onde encontramos o amor.

Fui abraçar o sol :)


Depois de dias infindáveis de chuva, vento, nevoeiro, dias cinzentões, que me deprimem e me obrigam a andar rabugenta e mal-humorada, segunda-feira acordou-me cheia de luz e com um céu daquele azul tão característico de inverno que não resisti. Não desperdicei a oportunidade.
Saí de casa cedinho e fui atrás do sol. Desci em direção à praia, estacionei o carro e deambulei pelas ruas sentindo o sol na cara (e o vento que não havia ainda perdido a força dos dias anteriores), respirando a bonança depois da tempestade. Percorri espaços sem rumo definido e acabei, por volta do meio-dia, sentadinha num restaurante que serve o meu tipo de comida – pratos deliciosamente vegetarianos – tendo como companhia a leitura de mais umas páginas de A vida secreta das abelhas, de Sue Monk Kidd.
A manhã e início da tarde encerraram na perfeição com uma saltada a um local que já me esperava há algum tempo. Pois é, apesar de ter, ora deixa lá contar – um comprado em novembro, seis ou sete recebidos no Natal e outros tantos em janeiro (ou seja treze, catorze livros novos para ler) – fiz uma visitinha à Biblioteca Municipal da minha terrinha e saí de lá com um livrinho debaixo do braço. Tenho então vinte dias para saborear uma obra que me vinha assediando com alguma insistência – Gente feliz com lágrimas, de João de Melo.
O sol tem assim um efeito retemperador. Arranca-me sorrisos, põe-me bem-disposta logo pela manhã (o que não é tarefa fácilJ) e é a desculpa ideal para fazer-me sentir que a vida é maravilhosa quando há luz, céu límpido, aquele calorzinho que só o sol de inverno proporciona e deambulações que consciente ou inconscientemente me encaminham para junto dos livros…

Para terminar, uma canção que resume “a perfect day” J


História de quem vai e de quem fica, de Elena Ferrante


Ficha técnica
Título – História de quem vai e de quem fica
Autora – Elena Ferrante
Coleção – Tetralogia de Nápoles – terceiro volume
Editora – Relógio D’Água Editores
Páginas – 325
Datas de leitura – de 05 a 11 de fevereiro de 2016


Opinião
“… continuava a ser uma subalterna dela [de Lila]. Senti que nunca conseguiria libertar-me dessa subalternidade, o que me pareceu insuportável. (…)
Desde então, durante anos, não voltámos a ver-nos, falámos só por telefone. Tornámo-nos, uma para a outra, fragmentos de voz, sem nenhum controlo do olhar. Mas o desejo de que ela morresse ficou escondido a um canto, enxotava-o, mas ele não se ia embora.” (págs. 174/5)

Eu queria vir a ser, embora nunca tivesse sabido o quê. E viera a ser, isso era verdade, mas sem um objetivo, sem uma verdadeira paixão, sem uma ambição determinada. Quisera vir a ser qualquer coisa – é essa a questão – só porque receava que Lila viesse a ser sabe-se lá o quem e eu lhe ficasse atrás. O meu vir a ser era vir a ser na esteira dela. Tinha de querer de novo vir a ser, mas por mim, como adulta, apartada dela.” (pág. 267)

Elena, a Lenú gordinha, estudiosa, calada, filha de um bairro pobre napolitano é agora uma mulher adulta e bem-sucedida. Com um diploma na mão, um romance publicado, um noivo proveniente de uma família abastada e respeitada nos círculos culturais, a amiga de Lina/Lila triunfou, tal como tanto almejava. Obteve aquilo por que tanto lutou.
Contudo, tal como é bem patente pelos excertos com que abri a opinião, essa ambição, esse querer vir a ser alguém foram visceralmente movidos por um instinto apenas – ser melhor do que Lina, suplantá-la, enxotar a sua sombra asfixiante e mostrar-lhe que esse doentio fio umbilical que as unia podia ser quebrado.
No início deste terceiro volume, Lina vive em condições muito precárias. Abandonou o seu bairro de sempre, abandonou o marido, levando o filho consigo, mas fê-lo na companhia de Enzo, que não hesitou em acompanhá-la. Os três vivem num apartamento miserável e Lina vê-se obrigada a trabalhar arduamente numa fábrica de enchidos pertencente a Bruno Soccavo, um jovem que havia conhecido durante as férias que passara em Ischia. Os seus dias são passados em condições horríveis, mal tem tempo para dedicar-se ao filho (que já é o menino doce e bem-comportado de antes) e à noite, derreada pelo cansaço, senta-se ao lado de Enzo e ajuda-o com os seus estudos. É aí que a faísca volta momentaneamente a acender-se, mas não é suficiente para abafar uma existência amarga, dura e sem perspetivas.
Por seu lado, Lenú vive a vida que sempre almejou. O seu romance é bem-sucedido, o que a leva a saltitar por ambientes culturais, fervilhantes de ideias, ideais e projetos entusiasmantes e travar conhecimento com homens e mulheres que estão na vanguarda literária, política e intelectual do país.
Sendo assim, as duas amigas vivem vidas completamente opostas, cujos caminhos só se voltam a cruzar quando Enzo contacta Lena e lhe pede que ajude Lina. E é aí que furtivamente os dados rolam. E o rumo da história das duas se inverte. E a amálgama de sentimentos que as une retorna. E volta a assustar-nos. E a entranhar-se em nós, como algo repulsivo, que queremos a toda a força escorraçar, mas que simultaneamente nos atrai.
Já afirmei e repito-o mais uma vez – a trama, as personagens, a contextualização espacial e temporal desta tetralogia é dolorosa, é crua, é, por que não, repulsiva, nada nem ninguém escapa à mordacidade da autora. Mas é vibrantemente real e, como tal, não há como escapar à leitura dos volumes que compõem a tetralogia de Nápoles. Este que acabo de ler é genial como os outros, a irmandade não se rompe, o interesse não esmorece e cria tantas ou mais expetativas como os seus antecessores. Contudo, não me arrebatou como o segundo – História do novo nome (ver opinião completa aqui) – talvez porque (e quem leu os três entenderá) este centra-se mais em Lina, por quem tendencialmente sinto mais afinidades, enquanto História de quem vai e de quem fica narra com mais pormenor a vida adulta de Lena e oferece-nos a sua perspetiva dos acontecimentos.
Não quero terminar esta opinião sem referir que no meio de tantas personagens “defeituosas”, destaco Enzo Scanno, homem íntegro, sisudo, trabalhador, dedicado e que, apesar de não ter tanto protagonismo, ganhou um lugar especial no meu cantinho de personagens cativantes e que espero consiga o seu quinhão de felicidade e justiça no quarto e último volume, que entretanto já foi publicado e se encontra nas livrarias. Maridinho, de que estás à espera? Há que trazê-lo para a nossa estante J

NOTA – 09/10

Sinopse
Elena e Lila, as duas amigas que os leitores já conhecem de A Amiga Genial e História do Novo Nome, tornaram-se mulheres. E isso aconteceu muito depressa.

Navegam agora ao ritmo agitado a que Elena Ferrante nos habituou, no mar alto dos anos 70, num cenário de esperança e incerteza, tensões e desafios até então impensáveis, unidas sempre com um vínculo fortíssimo, ambivalente, umas vezes subterrâneo, outras visível, com episódios violentos e reencontros que abrem perspetivas inesperadas.

Vamos aquecer o sol, de José Mauro de Vasconcelos


Ficha técnica
Título – Vamos aquecer o sol
Autora – José Mauro de Vasconcelos
Editora – Booksmile
Páginas – 320
Datas de leitura – de 31 de janeiro a 04 de fevereiro de 2016


Opinião
Zezé, o menino do pé de laranja-lima, entrou na minha vida em 2014, mais propriamente nos poucos dias de outubro que tardei em ler e em comover-me com a sua infância dura e problemática e com uma capacidade que o permite evadir-se dessa realidade negra e levar a sua imaginação aos limites. Como não podia deixar de ser, Meu pé de laranja lima foi uma das melhores leituras que fiz em 2014 (ver a opinião completa aqui) e, por isso, explodi de alegria quando soube que a história de Zezé tinha seguimento na obra Vamos aquecer o sol!
Neste segundo volume de carácter autobiográfico, Zezé está mais crescido e está a viver na cidade de Natal, em casa de da família do padrinho, que o acolheu para proporcionar-lhe a oportunidade de prosseguir estudos e assim conseguir ter um futuro melhor que o dos seus irmãos, que desde tenra idade, já trabalham horas a fio numa fábrica.
Apesar de já não passar necessidades, de não apanhar surras monumentais pelas diabruras que pratica e de todos o incentivarem ao estudo, Zezé continua a ser o menino franzino, precoce e que mendiga ternura. Vive numa casa confortável, pode ir ao cinema uma vez por semana, pode brincar com o mar, mas o seu coração do tamanho do mundo sofre por falta de afeto, da atenção e do carinho de um pai e de uma mãe.
“– Queria um pai que fosse ao meu quarto me dar boa-noite. Que passasse a mão na minha cabeça. Que entrasse no meu quarto e, quando eu estivesse descoberto, me cobrisse de mansinho. Que me beijasse o rosto ou minha testa desejando que eu dormisse bem.” (pág. 58)
Como mãe que retira um prazer indescritível sempre que todas as noites leva a cabo estas ternuras tão simples mas tão gostosas, voltei a sentir o coração apertadinho ao ler passagens como estas, voltei a querer que Zezé tivesse o que qualquer criança tem direito – um afago, uma ternura, uma meiguice de um pai e de uma mãe. Voltei ainda a constatar que o meu filhote é uma criança feliz porque felizmente lhe calharam uns progenitores que não se poupam no que diz respeito a mimo. Que lhe dizem frequentemente o quanto ele é especial e importante (apenas porque é nosso filho) e que lhe esbanjam mimos, beijos e atos tontinhos de amor.
Carente de ternura, Zezé torna a encontrar no seu fértil mundo imaginário consolo para essa falta de amor. Desta vez, não será um pé de laranja-lima. Será um sapo-cururu que lhe habita o coração e com quem fala e desabafa continuamente e também um dos seus atores favoritos – Maurice de Chevalier – que lhe entra no quarto, se senta numa poltrona, lhe abre os braços e se transforma no pai de que Zezé tão desesperadamente necessita.
Outra figura preponderante na existência de Zezé é o irmão Fayolle. De carne e osso, professor no colégio marista, vela por ele com desvelo. Acede às suas vontades, ri-se das suas traquinices, protege-o quando o castigo por essas traquinices é pesado e é o único a quem Zezé confessa tudo o que lhe vai na alma, inclusive a existência dos seus dois amigos imaginários.
A narrativa desenrola-se assim com uma mágica e ternurenta mistura de realidade e imaginação e permite-nos acompanhar o crescimento de Zezé, o seu desabrochar num rapaz que combate a debilidade física com braçadas vigorosas no mar, que continua a ser detentor de uma aguda inteligência, que se evade de um presente insatisfatório e edifica em sonhos os projetos mais mirabolantes e que desespera professores, familiares e vizinhos com travessuras diabólicas. Ao mesmo tempo que tudo isto nos é contado de uma forma muito gostosa (e há que ler “gostosa” com sotaque brasileiro, porque é muito mais gostoso J), não conseguimos desprender-nos do seu protagonista, da sua doçura, da sua fome de ternura, da sua generosidade, do seu coração de menino que não acompanha a passagem dos anos e sobretudo de uma vontade louca de o apertar nos nossos braços e oferecer-lhe esse amor que tanta falta lhe faz.
Vamos aquecer o sol é o desenlace que todos aqueles que se apaixonaram por Zezé como eu desejavam. Possibilita-nos encerrar esta doce narrativa com um sorriso nos lábios (o que não acontece com O meu pé de laranja-lima) e acreditar que para tudo há esperança – é só preciso abrir o coração, afastar as nuvens carregadas e deixar que o sol que nos habita possa aquecer-se. Com ternura, companheirismo, comunhão apaziguamento, aceitação e otimismo face ao que está por vir.

Deixem-se, como eu, conquistar pelo Zezé!!! É um favor que nos fazemos a nós próprios J

NOTA – 09/10

Sinopse

Nesta sequência de Meu Pé de Laranja Lima, Zezé enfrenta agora a pré-adolescência. Para escapar da fome e da pobreza, vai morar em Natal com a família do padrinho. Rebelde e endiabrado, ele tenta fugir da disciplina imposta pelos pais adotivos.

Balanço mensal - livros lidos e recebidos em janeiro


Janeiro é mês de aniversários cá em casa. Meu e do maridinho. E isso oferece-nos de bandeja a desculpa ideal para comprarmos livros para oferecermos um ao outro. E oferece a quem nos é próximo a oportunidade de também recorrer às livrarias em busca da prenda que sempre nos agrada tremendamente!
Fazendo as contas, este mês recheou a estante, à custa das referidas prendas, com sete novos livros. Até se me abre um sorriso de orelha a orelha ao escrever este número – sete!!! Quatro foram-me oferecidos e os outros três ao maridinho.
Os meus homens presentearam-me com duas obras que seguramente me arrebatarão.
Los besos en el pan, da minha querida e fantástica Almudena Grandes, aborda uma temática muito atual – a crise económica que assola não só o nosso país, como o de “nuestros hermanos”, contra a qual a geração mais nova não consegue combater da mesma forma que o fez a geração dos nossos pais e avós, já que lhe falta essa bagagem de sacrifício e respeito pelos bens mais essenciais e que, num piscar de olhos, podem evaporar-se.
Nos finais de 2015, numa das muitas vezes que cusco um blogue espanhol que sigo religiosamente (El búho entre los libros), fiquei entusiasmadíssima com uma das obras que Pedro, o administrador do blogue, considerou uma das melhores leituras que havia feito em 2015. A obra era de uma autora que até então me havia passado despercebido (por esta ou aquela razão) – Kate Morton. Comentei “essa descoberta” com o N. e ele aproveitou de imediato a deixa e presenteou-me com Jardim dos segredos, cuja sinopse é deliciosamente intrigante e poderosa.  
O amante japonês, de Isabel Allende foi-me oferecido pelos meus sogros e já figurava na minha wishlist há algum tempo, porque tudo o que li sobre esta obra indicava que Isabel Allende regressou em força, com uma história saborosa, envolvente que faz jus às suas criações mais antigas e que são tanto do meu agrado.
As minhas queridas espanholitas “pitufinas” regalaram-me com a última obra de Javier Marías, um autor espanhol fabuloso que sempre surpreende em tudo o que escreve e que em Assim começa o mal traz-nos mais um exemplo do quanto aquele que é considerado um dos melhores romancistas espanhóis da atualidade é um profundo conhecedor da alma humana. A sinopse faz-nos imaginar uma narrativa prometedora e suculenta J
O maridinho apenas recebeu obras de autores portugueses.
Em teu ventre, de José Luís Peixoto talvez me faça regressar ao mundo deste autor, com quem ando de costas voltadas, embora trate de um tema que mexe com o meu lado mais cético – as aparições de Fátima. Contudo, como há um lado muito maternal na narrativa, sinto que é desta que farei as pazes com este autor que sei que é dos melhores da atualidade portuguesa.  
Como é habitual, não deixamos fugir a oportunidade de deitar a mão a mais uma obra premiada pela editora Leya. Sendo assim, eu e o filhote oferecemos ao homem da nossa vida O coro dos defuntos, de António Tavares. As expetativas são altas e não queremos de forma alguma que sejam defraudadas. Esperemos que não…
Por fim, da sogrinha, tocou-lhe mais uma obra de Domingos Amaral – Um casamento de sonho –, um dos criadores de romances históricos que o N. mais aprecia e que seguramente cumprirá com os requisitos – um bom contexto histórico, uma história promissora e um ritmo vivo e envolvente.

No que diz respeito às leituras do mês que findou, tenho a dizer que me satisfizeram quase em pleno. Atribuí a nota máxima a duas delas – ao segundo volume da tetralogia de Elena Ferrante e a Perguntem a Sarah Gross – porque são simplesmente perfeitas, com histórias que nos abraçam e não nos largam. O último cais, de Helena Marques foi uma bela porta de entrada no mundo literário desta autora até então desconhecida. Por sua vez, Mar humano, arrebatou-me e desiludiu-me em simultâneo, mas não me impedirá de tentar ler mais daquilo que foi escrito pela sua autora. Aproveitei ainda, neste mês que parece não ter fim, para dar um saltinho aos anos da minha adolescência e reler uma preciosidade de 1965 – Não nos deixes, Anni, de uma autora finlandesa. Por fim, A catedral do mar, o único livro que li em janeiro escrito por um espanhol dececionou-me bastante e foi juntar-se ao punhado de obras que, até hoje, não consegui ler até ao fim L
Como sempre, deixo-vos os links para acederem à opinião completa das obras lidas este mês:


Termino dizendo que, com estas seis leituras, vou bem encaminhada para cumprir com um dos desafios deste ano – ler 60 livros J