O mundo em que vivi, de Ilse Losa


Ficha técnica
Título – O mundo em que vivi
Autora – Ilse Losa
Editora – Edições Afrontamento
Páginas – 196
Datas de leitura – de 17 a 21 de outubro de 2016

Opinião
Cada vez me convenço mais de que a literatura infanto-juvenil “esconde” tesourinhos de valor incalculável! Sempre que deambulo por uma livraria, os meus olhos e as minhas mãos percorrem com sofreguidão tanto as prateleiras da literatura adulta como as dos livros para os mais pequenitos. Faço-o não só porque tenho lá em casa um pequenote a quem tento abrir as portas do mundo fantástico das letras mas também porque não resisto às histórias criadas para as “hostes” infantis e juvenis.
A capa de O mundo em que vivi está frequentemente em destaque nas prateleiras das livrarias relacionadas com o Plano Nacional de Leitura. Recordo-me que só há bem pouco tempo satisfiz a curiosidade e li a sua sinopse. É óbvio que não fazia a mínima ideia de que a imagem que ocupa a capa da obra, uma menina vestida de verde, com um laçarote na cabeça e uns olhos negros, enormes e tristes, nos transportaria para as ruas, aldeias, vilas e cidades de uma Alemanha acabrunhada, ferida e ávida de bodes expiatórios em quem poderia cuspir, calcar, insultar, atemorizar e culpar de todos os males que a haviam levado a perder a Primeira Grande Guerra e o sentido e orgulho de se sentir uma nação plena.
Rose é neta e filha de judeus e num registo confessional narra-nos episódios da sua infância, da sua adolescência, da sua juventude, até ao momento em que sabe que tem apenas cinco dias para abandonar a sua pátria Alemanha se não quiser ser presa por ter cometido o crime de nascer no seio de uma família judia.
É óbvio que toda esta contextualização histórica, o crescente ódio não disfarçado que alguns alemães devotam a quem é judeu, o descontentamento económico, o surgimento do partido nazi, representam um papel preponderante nesta obra, mas aquilo que verdadeiramente me encantou (se é que se pode falar de encantamento num cenário destes) foi a naturalidade com que a autora me fez recordar a infância, as ações, atitudes, gestos e pensamentos de uma menina pequenina que de tudo tira as suas ilações, com tudo faz comparações e que questiona tudo o que não compreende. A primeira parte da obra, na qual Rose partilha connosco os tempos em que viveu com os avós, a ternura e doçura que caracterizavam a relação que tinha com o avô Markus é simplesmente maravilhosa, com passagens que tanto nos põem um sorriso nos lábios como nos faz derramar umas lágrimas.
À medida que Rose vai crescendo e o seu mundo passa a abarcar espaços e gentes que encontra fora das quatro paredes da sua casa, sentimos que o facto de ser judia a envergonha, a incomoda, não porque não goste ou não divida as crenças dos seus familiares, mas sobretudo porque começa a compreender que não ser igual aos outros, não frequentar a mesma igreja, não celebrar as mesmas celebrações a obrigará a sentir-se uma forasteira, uma estrangeira que não é bem-vinda no seu próprio país.
Tudo o que referi, adicionado a um punhado de personagens tocantes, começando pela própria Rose, pelo seu inesquecível avô Markus, pela avó Esther (a quem a neta entenderá talvez demasiado tarde), pelos tios Franz e Marie, e a uma escrita que agrada a jovens e encanta a adultos, faz de O mundo em que vivi uma obra obrigatória, um tesourinho que tem que ser descoberto por todos os leitores que buscam uma história extremamente bem construída na sua simplicidade e que toca todos os que mergulharem nas suas páginas. É o ponto de vista de uma criança, de uma jovem sobre um dos períodos mais negros da nossa história. Mas é principalmente uma narrativa intemporal, doce e inocente como a infância e complexa, contraditória e questionadora como a juventude.
Por favor, se ainda não leram esta obra de Ilse Losa, se, como eu, já percorrem os anos adultos há algum tempo, não deixem de saboreá-la e, por que não, a outras obras “infanto-juvenis”. Não deixem de fazê-lo apenas por serem aconselhadas a um público mais jovem. Estarão a permitir que vos escapem experiências de leituras inesquecíveis!

NOTA – 10/10

Sinopse
Plano Nacional de Leitura
Livro recomendado para o 8º ano de escolaridade, destinado a leitura orientada.

CRÍTICAS DE IMPRENSA

"Numa escrita inexcedivelmente sóbria e transparente, e através de breves episódios, este romance conduz-nos em crescendo de emoção desde a primeira infância rural de uma judia na Alemanha, pelos finais da Primeira Grande Guerra Mundial, até ao avolumar de crises (inflação, desemprego, assassínio de Rathenau, aumento da influência e vitória dos Nazistas) que por fim a obrigam ao exílio mesmo na eminência de um destino trágico num campo de concentração. Há uma felicíssima imagem simbólica de tudo, que é a do lento avançar de uma trovoada que acaba por estar "mesmo em cima de nós". Assistimos aos rituais judaicos públicos e domésticos, a uma clara atracção alternativa entre a emigração para os E.U. e o sionismo. Fica-se simultaneamente surpreendido pela correspondência e pelas diferenças entre o adolescer e o viver adulto em meios culturais muito diversos, pois há relances de vida religiosa luterana, católica e de agnosticismo à margem da experiência judaica ortodoxa. Perpassam figuras familiares de recorte nítido: os avós da aldeia, o pai, negociante de cavalos, desfeitado por anti-semitas e falecido de cancro, os tios progressistas Franz e Maria, o avô Markus, a amorável avozinha Ester (Kleine Oma), Paul (o jovem quase-namorado que se deixa intimidar pelo ambiente), Kurt (o jovem enamorado assolapado, culto e firme nas suas convicções). A acção é desfiada numa sucessão de fases biográficas progressivamente dramáticas - e nós acabamos por participar afectivamente de um destino ao mesmo tempo muito singular e muito típico, que bem nos poderia ter cabido. Um romance de características únicas na leitura portuguesa - e emocionalmente certeiro".
Óscar Lopes

2 comentários:

  1. Mais um para trazer da biblioteca na próxima visita, juntamente com Lua de Joana. Confesso que se não fosse a tua avaliação mesmo máxima, não lhes pegaria, pois já tenho a minha dose de literatura infantil/juvenil cá em casa!
    Desejosa de saber o que pensas da Monroe. Mais uma mulher!
    Bom fim de semana
    Paula

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    1. Paula, eu gosto mesmo muito de literatura mais juvenil e acho que não te vais arrepender se deres uma oportunidade aos dois livrinhos que queres trazer na próxima visita à biblioteca.
      Quanto à Munro, desiludiu-me um pouco, porque faltam sentimento e alma aos seus contos... Mas essa é só a minha opinião...
      Bom domingo!
      Beijinhos e leituras com muito sabor!

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