O remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe


Ficha técnica
Título – O remorso de Baltazar Serapião
Autor – Valter Hugo Mãe
Editora – Porto Editora
Páginas – 278
Datas de leitura – de 05 a 09 de abril de 2016


Opinião
Se dúvidas ainda houvesse, esta obra deita-as por terra – é prova claríssima do indiscutível talento de Valter Hugo Mãe como criador de histórias. Afasta-se daquilo que atravessa obras já lidas e aconchegadas num cantinho especial, ou seja, de um pendor mais poético, carregado de sensibilidade, beleza e outras emoções que despoletam empatia para com as personagens (como O filho de mil homens ou A máquina de fazer espanhóis) e abalroa-nos, usando as palavras do meu Saramago, com um tsunami que sacode violentamente os alicerces de todo o livrólico e amante da língua lusa.
Começo por dizer que nenhuma mulher que se preze engole de bom grado a forma como o género feminino é retratado nesta obra – “uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros. (…) o mundo que as mulheres imaginavam era torpe e falacioso, viam coisas e convenciam-se de estupidez por opção, a suspirarem em segredos inconfessáveis, cheias de vícios de sonho como delírios de gente acordada, como se bebessem de mais ou tivessem sido envenenadas por cobra má.” (págs. 25, 26) Não só a visão que os homens têm do sexo oposto e que está espelhada no excerto transcrito fere o nosso orgulho como também as personagens femininas, retratadas como fornicadoras que se “deixam furar” por dez homens por dia, como bruxas dotadas dos poderes mais maléficos ou como simplesmente feias, vingativas ou torpes, espezinham a nossa essência e desencadeiam uma revolta surda que quase me levou a fechar a obra e amaldiçoar dois dos meus autores preferidos – o que a escreveu e o que a premiou e consequentemente recomendou.
Contudo, essa revolta e sensação de orgulho ferido apenas se revelaram com mais veemência nas páginas iniciais da obra, já que a leitura de O remorso de Baltazar Serapião pressupõe que nunca esqueçamos a sua contextualização histórica – a ação desenrola-se em plena Idade Média, durante o reinado de Dom Dinis. Ora, valendo-me das sapientes palavras do meu Saramaguinho “… o que acontece é que aquilo cheirava mal, era feio”. O Portugal do século XIII era de famílias nobres, endinheiradas, exploradoras e do povo faminto, ignorante e dependente; de homens que apenas viam na mulher alguém em quem podiam libertar o fogo que lhes queimava entre as pernas, alguém que lhes devia total obediência, cujo lugar era dentro de paredes, cuidando do marido e da prole; de mulheres submissas, que encarnavam todas as tentações, pecados e outros lados demoníacos e que, como tal, nunca eram de fiar; de crenças, superstições, bruxarias, feitiços e de uma religiosidade que andava de mão dada com o paganismo.
 Valter Hugo Mãe cava assim um fosso entre uma Idade Média “… desinfectada, limpa como se houvesse detergentes de todo o tipo…”, recorrente em outras obras, criando uma narrativa onde nos sentimos verdadeiramente na Idade Média, onde tropeçamos em dom Afonso, o nobre da aldeia da família de Baltazar, a quem todos devem obediência e que abusa desse estatuto para deitar mão a toda a criada jovem e bonita que trabalhe em sua casa; onde convivemos com os “Sarga”, alcunha da família de Baltazar, amaldiçoamos os seus elementos masculinos por todos os horrores que praticam nas suas mulheres, encolhemo-nos de nojo por determinadas práticas que levam a cabo com animais e condoemo-nos da mãe Sarga e de Ermesinda; onde somos testemunhas da sujidade, da fealdade, do quão homens e mulheres pouco se diferem de bestas e de uma “comunhão perfeita” entre Deus, o céu, o inferno, superstições, feitiços e bruxarias.
O remorso de Baltazar Serapião conquista-nos por tudo isto. Não é, no meu ponto de vista, uma obra de personagens que nos arrebatam como, por exemplo, Crisóstomo, Camilo ou Isaura de O filho de mil homens. É uma obra de época e sobretudo um hino à genialidade criadora de Valter Hugo Mãe, que nada descura na sua composição, desde os nomes das personagens, a contextualização, o pensamento medieval à primazia total das ações e reflexões masculinas face às correspondentes femininas (nunca soube verdadeiramente o que pensava Ermesinda e porque agia da forma como agia). Recorrendo de novo a Saramago – “… este remorso tem de ser lido como algo que traz muito de novo e fertilizará a Literatura.” (págs. 8, 9).
Foi assim uma leitura que me conquistou mais pela sua forma que pelo seu conteúdo. Não tão "preenchedora" como as de O filho de mil homens ou a de A máquina de fazer espanhóis. Mas que recomendo, porque Valter Hugo Mãe assim o merece.

NOTA – 08/10


Sinopse

Numa Idade Média brutal e miserável, Baltazar Serapião casa com a mulher dos seus sonhos e - tal como o pai fizera antes com a mãe e com a vaca, fêmeas irmanadas em condição e estatuto familiar - leva muito a sério a administração da sua educação. Mas o senhor feudal, pondo os olhos na jovem esposa, não desiste de exercer sobre ela os seus direitos... Entregue aos desmandos do poder e do destino, Baltazar será então forçado a seguir por caminhos que o levarão ao encontro da bruxaria, da possessão e, finalmente, do remorso.Com um notável trabalho de linguagem que recria poeticamente a língua arcaica e rude do povo, O Remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe - autor, entre outros, de O Nosso Reino, selecionado pelo Diário de Notícias como um dos melhores romances portugueses de 2004 -, é uma tenebrosa metáfora da violência doméstica e do poder sinistro do amor.

2 comentários:

  1. Olá Ana,
    Tentei ler este livro uma vez, mas não consegui. A brutalidade das palavras do Valter Hugo Mãe arrasou comigo. Mas um dia ainda volto a tentar.
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Olá, Isa!
      Entendo-te perfeitamente! Precisei de respirar fundo muitas vezes, relembrar a mim mesma "Estás a ler um texto passado no século XIII, onde tudo era feio, limitado e animalesco". Só assim consegui levar a leitura a bom termo.
      Contudo, é inegável o talento do autor cuja obra abrange o lado mais sensível e o mais cru e bruto.
      Beijinhos e muito boas leituras!

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