Os livros que devoraram o meu pai, de Afonso Cruz

Domingo, 12 de abril de 2015




Opinião
Num par de horas “papei” as 126 páginas do presente que o meu filhote me ofereceu no último Natal. Para além de ter uma dedicatória muito ternurenta e cheia de mimo (como ele sabe que a mãe ADORA), este livrinho é uma pérola de inestimável valor, porque tem aquele dom de, em poucas páginas, nos engolir, de nos devorar e de nos fazer compreender o quanto é preciosa, sem preço a afeição que devotamos aos livros. Uma afeição que nos faz saborear a vida com aquele prazer, aquele prazer que os livrólicos partilham entre eles e o objeto da sua adoração, do seu vício.
Num livrinho tão curtinho, não é de estranhar que todos os seus capítulos também o sejam. O que abre a obra apresenta-nos duas das suas personagens fulcrais – Elias Bonfim, narrador e protagonista, e sua avó, que será quem terá um papel preponderante na jornada que o seu neto empreenderá em busca de seu pai e do seu grande amor – os livros, pelos quais tinha tal obsessão que os levava consigo para todo o lado, inclusive para o local de trabalho, um “mundo entediante, chato, plano aborrecido, cheio de papéis, papeladas e outras burocracias…” (pág. 11).
Do pai, Elias apenas sabe o nome e o que lhe foram contando – a referida paixão imensurável pelos livros e que, um dia, um deles o devorou, levando ao seu desaparecimento e à orfandade do filho.
 Essa orfandade faz com que Elias se sinta desamparado, mas ao mesmo tempo curioso. E essa curiosidade será saciada quando a sua avó lhe entrega a chave da arca do tesouro – a chave de um sótão onde está encerrada a biblioteca do Vivaldo Bonfim. É então a partir desse dia que a rotina de Elias sofre uma reviravolta. Todos os dias sobe ao sótão, senta-se num cadeirão às riscas (o mesmo onde se costumava sentar o seu pai) e deixa que a sua alma de leitor viaje, literalmente se perca num emaranhado de letras, páginas, histórias. Essas viagens no espaço e no tempo são tão intensas, tão vívidas, tão reais que não consegue regressar e, quando o faz, é muito a custo, é só porque a voz da avó a chamá-lo o traz de volta ao tempo presente.
É sobretudo neste ponto que me identifico por completo com Elias. Desde pequena que sempre me foi muito difícil “cortar o cordão” com uma leitura que me estivesse a absorver totalmente. Fui repreendida inúmeras vezes pela minha mãe (tal como Elias) porque a comida arrefecia na mesa à minha espera, porque tinha que ir para a cama, porque tinha que estudar, porque… enfim, tudo porque não havia maneira de largar o livro. E como poderia fazê-lo? A saciedade só se instalava com o virar da última página e, mesmo assim, rapidamente desaparecia, pois havia mais um livro, mais uma história, mais umas personagens entusiasmantes para conhecer, para poder comparar com outras já conhecidas.
É por tudo isto que o vício das letras literárias não me larga e nunca me largará. A minha felicidade depende em muito dos livrinhos. E Elias finalmente compreendeu isso e juntou-se a nós, a mim, ao seu pai, a qualquer livrólico que ande por aí.
Os livros que devoraram o meu pai atraiu-me com o seu título (seria impossível não fazê-lo), mas conquistou-me com o seu conteúdo. Fartei-me de sublinhar passagens (deixarei aqui algumas), de sentir um carinho muito especial pela ligação que existe entre Elias e a sua avó (que saudades que tenho dos meus velhinhos) e de sentir uma invejazinha por nunca, enquanto adolescente, ter tido uma oportunidade tão maravilhosamente fantástica de ser dona de uma chave de uma biblioteca escondida num sótão, onde “estava tudo cheio de letras a fingirem-se de mortas, mas – sei muito bem – basta que passemos os olhos por elas para saltarem cheias de vida.” (pág. 21).
A minha estreia literária no mundo de Afonso Cruz foi assim MUITO auspiciosa e terá as devidas consequências J

NOTA – 09/10 (Não atribuo a nota máxima talvez porque estou a ser picuinhas e muito exigente, já que achei um bocadinho forçado o desenlace do melhor amigo de Elias…)

“… um bom livro deve ter mais do que uma pele, deve ser um prédio de vários andares. O rés-do-chão não serve à literatura. Está muito bem para a construção civil, é cómodo para quem não gosta de subir as escadas, útil para quem não pode subir as escadas, mas para a literatura há que haver andares empilhados uns em cima dos outros. Escadarias e escadarias, letras abaixo, letras acima.” (págs. 14/15)
As palavras dela vinham cheias de cabelos brancos, podia sentir que havia nelas muita vida vivida.” (pág. 18)
Para uns, a raiz é a parte invisível que permite a árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.” (pág. 85)
Atravessar a Rússia significa percorrer onze fusos horários. Quando numa ponta do país é de dia, na outra é de noite. A Rússia é com a alma humana. Se tem um lado luminoso, é porque a outra ponta está no escuro. Somos todos feitos desta estranha mistura de fusos horários.” (pág. 86) 
Porque um homem é feito dessas histórias, não é de adê-énes e músculos e ossos. Histórias.” (pág. 126)

Sinopse

A estranha e mágica história de Vivaldo Bonfim.
Vivaldo Bonfim é um escriturário entediado que leva romances e novelas para a repartição de finanças onde está empregado. Um dia, enquanto finge trabalhar, perde-se na leitura e desaparece deste mundo.
Esta é a sua verdadeira história — contada na primeira pessoa pelo filho, Elias Bonfim, que irá à procura do seu pai, percorrendo clássicos da literatura cheios de assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.

2 comentários:

  1. Olá Ana,

    Já há muito tempo que quero ler livros de Afonso Cruz, mas ainda não li nada.
    Este também está na minha lista.
    Parece ser bom.

    Beijinhos e boas leituras.

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    1. Olá, Isaura!
      Vale a pena ter este livro na tua lista e lê-lo o mais rápido possível! Também já ouvi e li opiniões excelentes sobre "Para onde vão os guarda-chuvas". Dizem que ainda é melhor do que este!!!
      Beijinhos e muito boas leituras!

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