Os Peixes da Amargura, de Fernando Aramburu

Quinta-feira, 30 de janeiro de 2014




Sinopse
Para lidar com o transtorno de uma filha hospitalizada e inválida, um pai atém-se às suas rotinas e passatempos, como cuidar dos peixes no seu aquário; um casamento acaba em enfado, ante o instigar dos fanáticos contra o vizinho, à espera que este se mude; um homem faz o possível para evitar que o ignorem e vive aterrorizado porque todos lhe voltam as costas; uma mulher decide partir com os filhos, sem perceber porque a acusam.
Em jeito de crónica ou reportagem, de testemunhos na primeira pessoa, de cartas ou relatos contados aos filhos, Os Peixes da Amargura reúne fragmentos de vidas nas quais, sem dramatismo aparente, só emerge a emoção - simultaneamente uma homenagem ou denúncia - de forma indireta ou inesperada, a que seja mais eficaz. 
Num estilo ilusoriamente simples, Os Peixes da Amargura transporta-nos para um quotidiano inquietante, onde o prosaico convive com o arrepiante, tendo por pano de fundo um País Basco e a sombra tenebrosa da ETA. 
Pela variedade e originalidade dos narradores e abordagens, a riqueza dos personagens e as suas diferentes experiências, Aramburu transforma uma imagem inesquecível dos anos de chumbo e sangue num romance de tremendo impacto.

Opinião
Numa das habituais conversas “literárias” com “a minha” Nancy confidenciei-lhe que estava deslumbrada com as descobertas que vinha fazendo da literatura castelhana e que muitas delas se deviam às páginas oficiais de editoras, bem como a outras a que estou associada em redes sociais. Mencionei ainda que, numa das últimas deambulações pela página da Alfaguara espanhola, “havia tropeçado” em livros de um autor basco e que os mesmos me haviam espicaçado a vontade de ler, pela primeira vez, algo escrito por um basco. Aqui, a Nancy disse-me o que estou sempre ansiosa por ouvir – que tinha uma obra de um autor dessa região autónoma, uma coletânea de contos, que abordava “um quotidiano inquietante, onde o prosaico convive com o arrepiante, tendo por pano de fundo um País Basco e a sombra tenebrosa da ETA”. É óbvio que fiquei de imediato em pulgas!!! Como poderia não ficar?...
Não sou grande admiradora de contos. Penso sempre que são como dar um docinho a uma criança e tirá-lo a meio, quando se está a lamber a boca, a saborear a doçura e já a salivar de prazer J Mas tenho que confessar que todos os contos de Os Peixes da Amargura conseguiram, apesar do seu título “amargo”, deixar-me um sabor pleno e muito aprazível na alma. Porque transmitem-nos emoções, convidam-nos a entrar na vida quotidiana da gente basca, de homens e mulheres que conviveram e convivem de perto com a luta fratricida por um objetivo, pelo nacionalismo e independência de uma região que se sente sufocada pelo poder central.
A obra é composta por dez contos e, no seu conjunto, através de uma linguagem simples, que não cai na lamechice, mas que nos comove e nos faz experimentar sentimentos distintos, agarrou-me, cativou-me e deixou-me com vontade não só de relê-lo muito brevemente como de adquirir a sua versão traduzida para português J!

1.   “Os Peixes da Amargura” – o conto que abre a obra é também aquele que lhe dá o nome. Debruça-se sobre uma família cuja filha foi uma vítima inocente de um ataque bombista. Todos os seus parágrafos acabam intencionalmente com a palavra “triste”. Porque esse é o sentimento que nos domina ao lê-lo…

2.   “Mães” – a dor de uma mãe que perde o filho, morto por um guarda civil, em contraste gritante com a dor de uma mulher e mãe de outro guarda civil que, como represália, é barbaramente assassinado. “… uma mistura de desânimo e de compaixão ao ver que existem pessoas convencidas de que, para criar o país dos seus sonhos, têm de causar forçosamente dor ao próximo.” (pág. 45)

3.   “Maritxu” – uma mãe viúva. Um filho “gudari” (soldado da causa basca) preso por ter estado envolvido num ataque bombista. Uma mãe que faz visitas assíduas à prisão, mas que se sente dividida – “Que matem guardas e bufos, vá lá. Mas crianças, não”. (pág. 57)

4.   “O melhor eram os pássaros” – um dos meus favoritos. Relato doloroso de uma mulher, que está prestes a ser mãe e que se dirige a esse filho ainda por nascer, para contar-lhe como foi o dia em que perdeu para sempre o seu pai. “Tiraram-vos o avô, filho. Tiraram-vos um dia numa terra distante, vai fazer vinte anos”. (pág. 72) “Roubaram-me o pai, mas sou eu quem decide a lembrança que guardo dele” (pág. 77)

5.   “A colcha queimada” – a noite de um casal de meia-idade é de novo abalada pelo ataque a um vizinho vereador, o qual desencadeia uma desavença mais num matrimónio já desgastado pela vida em comum.

6.   “Relatório de Creta” – o meu conto favorito. O poder do verdadeiro amor que tudo consegue, até mesmo “curar” um filho, já adulto, que presenciou o assassinato do seu “aitá”, do seu pai. “À noite, depois do beijo de despedida, perguntei-lhe se queria que lhes trouxesse alguma coisa de San Sebastián. «Traz-me o meu pai.»” (pág. 121)

7.   “O inimigo do povo” – Como um rumor, um mal-entendido, algo que apenas presenciámos pode desencadear uma onda de ódio e de desprezo por alguém até aí nosso amigo, compincha habitual de tardes passados num bar. “… da próxima vez há de ser pior, amigos asquerosos dos fascistas, não vamos parar de malhar até se porem ao piro.” (pág. 145)

8.   “Pancadas na porta” – narração do dia-a-dia de um “gudari” preso numa solitária. É mais uma prova do quanto o estilo e a escrita de Aramburu são inteligentes e sedutores porque conseguem que o leitor até sinta compaixão por um assassino.

9.   “O filho de todos os mortos” – outro dos meus favoritos. Mais um adolescente a quem roubaram o direito de nascer e crescer na companhia do pai. “– Ouve, amá, porque me dás sempre dois beijos e os contas? – Um é meu, o outro de quem nunca te pôde beijar.” (pág. 185). Ao terminar este conto, de novo me questionei – como é possível que alguém que assassina outro seja aclamado e homenageado publicamente como um herói?...

10.        “Depois das chamas” – escrito como um texto dramático, é um exemplo de como se pode fazer comédia através da tragédia.

Resumindo, Aramburu conquistou-me, sem dúvida. A sua escrita é realmente ilusoriamente simples, mas que nos chega ao coração, nos faz derramar algumas lágrimas (eu que o diga), indignar-nos com a crueldade e cegueira de alguns e compadecer-nos com o sofrimento e tristeza de outros. E, não menos importante, ensinou-me algumas palavras de basco, uma das línguas europeias mais difíceis, mas que não importava nada de aprender J

Recomendadíssimo!!! Gracias, Nancy J

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