Contracorpo, de Patrícia Reis

Quinta-feira, 31 de outubro de 2013




Sinopse
Uma mulher fica viúva com dois filhos. Alguns anos depois da morte do marido, a vida não se refez e o filho mais velho, agora adolescente, cresce contra a mãe, num silêncio obstinado que só quebra nas histórias que se conta para adormecer e nos desenhos que faz de forma compulsiva. Com o anúncio do chumbo escolar, a mãe decide, sem grandes reflexões, fazer uma viagem com este filho, deixando o pequeno com os avós. Não se trata de uma viagem com destino, mas antes uma procura.
Contracorpo é um livro contra o silêncio e sobre o silêncio. É uma história de procura de identidades distintas - da mulher e do quase homem - e ainda de descobertas. Uma mãe nunca é o que se espera. Um filho é sempre uma surpresa. O encontro dá-se enquanto procuram caminhos, de Lisboa a Roma, num jogo de claro escuro. Como se tudo fosse uma imagem.

Opinião
Não é novidade que sou fã incondicional de Patrícia Reis – tenho as suas obras todas! Identifico-me muito com a sua escrita, que à partida parece muito simples, com parágrafos e capítulos predominantemente curtos, mas que nos agarra, que nos toca e que nos faz refletir.
Em Contracorpo, deparei-me com a primeira história que tem como protagonista Maria, uma mãe viúva, que desde a morte do marido, vive para o trabalho e para os filhos. Contudo, enquanto a relação com o filho mais novo decorre tranquilamente, com ternura e mimos q.b. e os cuidados necessários para que as suas necessidades básicas sejam cumpridas, entre ela e a sua “cria” mais velha levantou-se um muro de silêncio (apenas quebrado por raros momentos monossilábicos) que parece não querer ceder… Então, num momento de desespero e que podemos descrever como sendo um daqueles de “ou vai ou racha”, Maria toma uma decisão – fazer uma viagem, aparentemente sem destino concreto ou regresso planeado, tendo apenas como companhia Pedro, o filho mais velho. E será nessa viagem que conheceremos mais intimamente estes dois, continuando a autora a dividir a narrativa em capítulos que alternam entre si os narradores – Maria e Pedro.
Não consigo imaginar a dor que sentirá um filho quando a morte lhe rouba um dos progenitores. Esse “roubo”, com toda a certeza, será traumatizante em qualquer fase da nossa vida, mas na adolescência, naquela fase que questionamos tudo e todos, que paradoxalmente testamos a autoridade dos pais e ao mesmo tempo necessitamos deles mais do que nunca, será como se nos tirassem o chão, nos deixassem desprotegidos, desamparados face à passagem dos dias, à passagem que, a partir daquele momento, passa a ser mais solitária e repleta de perguntas sem respostas, de muita revolta surda e muda…
Sem recorrer à lamechice (como nunca o faz), mas com passagens emotivas, serenas e que ficam connosco, Patrícia Reis convida-nos a entrar no carro de Maria e de Pedro, a sentar junto deles, a apreciar a paisagem que vai ficando para trás à medida que a viagem continua e a ser o espetador das mudanças subtis que vão ocorrendo enquanto o conta-quilómetros vai acumulando quilómetros. O silêncio deixa de ser incómodo como até aí havia sido, instala-se como muitas vezes se instala entre duas pessoas que compreendem que muitas vezes esse silêncio é de ouro e que as palavras podem ser desnecessárias… Os monossílabos vão sendo substituídos e mãe e filho conquistam passo a passo, quilómetro a quilómetro, uma relação, um entendimento que os faz ver um ao outro como alguém que sabe, que sofreu na pele a mesma dor que o outro sofreu e que está ali para dar a mão, uma palavra ou um olhar de conforto e alento.
Sendo assim, o risco que Maria tomou valeu a pena. Arriscou tudo para reconquistar o filho, não quis passar por mais uma perda e recuperou não só o seu lugar de mãe na vida de Pedro, como se recuperou a si mesma. Como mãe e como mulher.
Por fim, só me falta dizer que recomendo sem reserva este livrinho precioso e registar aqui algumas (das muitas) passagens que sublinhei J
As viagens preferidas (…) sempre foram curtas, de carro, sem destino. (…)
Hoje vamos dormir na paisagem.
E o carro levava-os para o Alentejo, para o Gerês, para a raia. Nessas viagens existia um silêncio reconfortante. Nada de conversas forçadas ou de constrangimentos. Deixavam a música correr a estrada e cantarolavam. Por vezes sorriam. Outras, as mãos tocavam-se por instantes.” (pág. 52)

“Maria hesita em continuar a falar. Cala-se. De repente sente medo. O filho despe a camisola, as calças, vai à casa de banho. Ouve-o, os tais gestos que adivinha, todos os detalhes, mesmo os mais pequenos, como se os estivesse a ver. Era tão pequeno. E agora? Quase um homem. Quando Pedro regressa ao quarto, deita-se a medo. A cama é curta. E estreita. Maria sorri e fecha o livro
Dorme bem.
Boa noite, mãe.
Na escuridão do quarto, Pedro continua de olhos abertos. Há uma luz que vem da janela, por vezes passa um carro e o barulho vem de longe, aproxima-se afasta-se. De repente pergunta
Tens medo do quê, mãe?
Ah, do escuro, de aranhas, que vos aconteça alguma coisa. Não sei. E tu, Pedro?
Às vezes acho que não tenho medo de nada, tento não pensar nisso. Outras vezes tenho medo dos dias a seguir. Do futuro.
Sabes, uma das coisas que aprendi é que não vale a pena pensar no futuro. A vida troca-nos as voltas.
Pois. Boa noite, mãe.
Boa noite.” (pág. 106)


O pai é um abraço enorme que me deu um dia. É essa a recordação que o mantém preso a mim. Aquele abraço apertado e depois um afago no meu cabelo, a mão do pai presa, por instantes, no cabelo. Sinto lágrimas nos olhos.” (pág. 153)

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