Daqui a nada, de Rodrigo Guedes Carvalho

Sábado, 20 de setembro de 2014



RELEITURA

Sinopse
Romance de maturidade invulgar na apreciação de uma época, de uma geração e de uma mentalidade.
Críticas de imprensa
«O autor demonstra uma maturidade invulgar na apreciação de uma época, de uma geração e uma mentalidade não diretamente vividas por ele próprio mas que, com a devida distância, consegue descrever de forma exemplar […] A escrita de Daqui a Nada é vigorosa sem ser agressiva, sensível sem ser lamechas, inteligente sem ser prepotente. Este livro é essencialmente um ajuste de contas com a História.» - Helena Vasconcelos, in Público
«O uso de técnicas variadas, a linguagem viva e coloquial, por vezes lírica, sempre que o espelho deforma ou transfigura a imagem, o cruzamento de reflexos entre o passado e o presente, o interesse que o leitor sente pelo desenvolvimento da história […] O livro lê-se num fôlego, é pequeno, intenso e muito bem construído.» - Maria Estela Guedes, in Diário de Notícias

Opinião
Mais uma releitura. E desta vez de um autor que me é muito chegado ao coração. Tenho todos os livros que Rodrigo Guedes de Carvalho editou até ao momento e tenho pena que a sua carreira de escritor tenha caído num impasse sem data para voltar a dar frutos…
Quando pensei em reler um dos seus livros não consegui pôr de lado a minha “mania” de reger as leituras pela cronologia e, como tal, era inevitável que retirasse da estante Daqui a Nada, o romance que Rodrigo Guedes de Carvalho escreveu com apenas 20 anos, o seu primeiro romance.
Li este romance há 6 anos atrás e confesso que já recordava muito pouco… Contudo, à medida que a releitura avançava, as recordações foram surgindo, sem que, no entanto, prejudicassem de nenhuma forma esta minha segunda leitura J
Se quisesse, em poucas palavras, descrever Daqui a Nada ocorrer-me-iam vocábulos como melancolia, desamparo, solidão, incompreensão, frustração e sonhos e projetos falhados. Todas as personagens com quem vamos cruzando ao longo da narrativa não conseguiram ter a vida com que sonharam e presentemente sobrevivem, demonstrando não ser donos de si mesmos e muito menos dos dias que discorrem e do que maquinalmente vão fazendo. Pedro pode ser considerado a personagem principal e é o espelho disso mesmo. Homem que já passou dos 40 anos, médico de profissão, está separado da mulher desde que regressou da Guerra Colonial. Também não tem nenhum contacto com a filha e mantém um relacionamento tumultuoso com uma jovem com metade da sua idade. É com ele como narrador que a obra se inicia e de imediato compreendemos (ao sermos os “destinatários” dos seus pensamentos mais íntimos) que a sua existência atual é no mínimo infeliz e desastrada. Nada é realizado com ânimo, tudo serve para que se confronte com os seus falhanços e recorde. Recorde um passado caracterizado por uma relação fria com um pai que idolatrava, por um casamento precoce, para o qual não estava preparado (apesar de haver amor) e, sobretudo, por uma experiência aterradora nos tempos que passou em Angola a lutar por uma guerra que nada lhe dizia.
No final do livro, encontramos uma nota escrita pelo autor em que este nos informa de que Daqui a Nada foi o primeiro livro que escreveu e que no mesmo se deparou “com inúmeras «imperfeições» (…) Há malabarismos em que já não me revejo, excessos metafóricos que já não me parecem necessários.” Não posso deixar de concordar, pois em algumas passagens há demasiados floreados, excessos realmente. Mas há também um estilo que “nasce”, uma linguagem e técnicas que encontraremos mais refinadas nos romances posteriores. E há, incontornavelmente, uma influência de António Lobo Antunes (a quem Rodrigo Guedes de Carvalho dedica esta obra), de um Lobo Antunes que tão bem conheço e admiro de obras como O manual dos inquisidores, Memória de Elefante ou mesmo Explicação dos Pássaros – as personagens que vão sendo os vários narradores da obra, a omnipresença da Guerra Colonial e das suas trágicas consequências e o tom melancólico e de desamparo que percorre todas as obras citadas.
Para rematar, tenho que referir que é verdade que sempre me atraíram as personagens misteriosas, rebeldes ou então aquelas que se mostram sofredoras, desanimadas, frustradas ou resignadas com a sua existência, mas não foi apenas essa “atração” que me fez gostar tanto de voltar a ler Daqui a Nada. Foi por Pedro, Marta, Rita e outros encaixarem nesse perfil e por tudo o que define a escrita do autor, que nos faz ver as palavras do texto, a estrutura das frases, a pontuação como elementos que obedecem ao discorrer do pensamento, por vezes ordenado, por vezes caótico. E… tinha que dizê-lo… porque a ação decorre na minha querida Cidade “Inbicta” J!
Vale a pena conhecer a “biblioteca” de Rodrigo Guedes de Carvalho!
Alguns excertos da obra:
"... de maneira que suprimias essa falta pegando-me de vez em quando na mão, em silêncio, quando julgavas que eu já tinha adormecido em frente ao televisor. Foi então que te comecei a preparar um pequeno truque, fechava os olhos, forçava a respiração, e ficava à espera que te sentasses ao pé de mim. Não me agarravas logo a mão, pelo que deduzo que devias ficar um montão de tempo a ver-me dormir, se calhar olhavas-me e pensavas que se eu tivesse acordada terias muita coisa para me dizer. Mas eu dormia profundamente e a tua coragem tinha o álibi da oportunidade, Amanhã digo-lhe, amanhã conto-lhe o que me move e emociona, devias pensar, sabendo que mentias, pegavas-me então na mão pequenina e esperavas aquela compreensão feita de pele que te habituaste a ter como única e suficiente." (pág. 96)
A solidão, dou comigo a pensar, não é ruminar ideias desconexas no vazio de uma casa ou à solta num jardim, a solidão é um casal que janta em silêncio, não por falta de assunto, não por o amor ter acabado, mas por medo, por receio de que as palavras não possam ser outras que não, E agora?, E agora como é que se faz?" (pág. 108)

2 comentários:

  1. Obrigado pela tua dica. Também sou um grande admirador do Rodrigo Guedes de Carvalho e li as 4 obras dele há quase dez anos e na altura gostei muito. Como tu, tenho muita pena que não tenham saído novas obras dele. Decidi seguir o teu conselho e reli o " DAQUI A NADA" e adorei bastante voltar a saborear a escrita deste grande escritor.

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    1. De nada! Esse é um dos objetivos deste meu cantinho :) É mesmo saboroso reler obras magníficas como as do Rodrigo, não é?
      Continuação de boas (re)leituras!!

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